Novak Djokovic na mira do governo sérvio: de herói nacional a alvo político

Novak Djokovic na mira do governo sérvio: de herói nacional a alvo político
3 setembro 2025 0 Comentários Hellen Hellen

O início da crise: de Novi Sad às ruas do país

O maior ídolo esportivo da Sérvia vive hoje um conflito que vai além das quadras. O que parecia impossível aconteceu: o nome de Novak Djokovic, sinônimo de títulos e orgulho nacional, virou pivô de uma batalha política dentro do seu próprio país. O estopim foi uma tragédia, a reação foi popular, e a tomada de posição do tenista abriu uma rachadura que já afeta sua imagem, seus negócios e sua rotina.

Em novembro de 2024, a queda da cobertura da estação ferroviária de Novi Sad, segunda maior cidade do país, matou 16 pessoas e feriu dezenas. As cenas de caos correram a Sérvia e geraram uma pergunta direta: poderia ter sido evitado? Estudantes, professores e moradores acusaram autoridades locais de negligência e falta de fiscalização em obras públicas. A revolta rapidamente saiu dos campi e tomou as ruas.

O movimento cresceu em escala e organização. Inicialmente, eram vigílias silenciosas por respeito às vítimas e pedidos por transparência. Logo surgiram cartazes exigindo investigações independentes, demissões de responsáveis e auditorias em contratos de infraestrutura. As universidades viraram pontos de encontro e logística. Em poucas semanas, as manifestações estavam em centenas de cidades, com redes de apoio, caixinhas para custear ônibus e advogados voluntários para acompanhar detenções.

A pauta não era mais só Novi Sad. Vieram relatos de falhas em licitações, atrasos em obras e suspeitas de superfaturamento. O alvo virou o sistema. Grêmios estudantis e coletivos civis passaram a falar em cultura de impunidade e captura do Estado por interesses políticos. Nas ruas, os gritos eram por responsabilização e por mudanças práticas: mais transparência, acesso a dados públicos, e regras contra nomeações políticas em cargos técnicos.

Enquanto a pressão aumentava, o governo tentou isolar o caso às autoridades locais e rechaçou a ideia de uma crise sistêmica. Esse jogo de versões só inflamou os protestos. A mobilização se espalhou por regiões do interior e alcançou bolsões que raramente participavam de atos, como trabalhadores do transporte e pequenos comerciantes. O tom ficou mais duro quando entidades médicas e de engenharia pediram auditorias externas em obras recentes.

Quando os números nas ruas saltaram, a narrativa mudou de lado a lado. De um lado, organizadores apontavam para uma onda orgânica, liderada por jovens e por famílias. Do outro, aliados do governo diziam ver atores políticos tentando surfar a dor coletiva. A tensão ficou madura para o gesto que viria do maior nome do esporte sérvio.

Do silêncio ao confronto: a guinada de Djokovic e o efeito dominó

Do silêncio ao confronto: a guinada de Djokovic e o efeito dominó

Em dezembro de 2024, Djokovic quebrou um hábito de anos: falou de política. Nas redes, escreveu que acreditava na força da juventude, que a educação era a base do país e que a voz dos estudantes precisava ser ouvida. Não atacou diretamente autoridades, não pediu a queda de ninguém, mas deixou claro de que lado estava: ao lado de quem pedia respeito e diálogo.

Para um atleta que construiu sua imagem evitando embates políticos, foi uma virada. A mensagem caiu como um raio. Parte da Sérvia aplaudiu, parte torceu o nariz. A classe política reagiu com cuidado nas primeiras horas, mas as contas alinhadas ao governo começaram a questionar a motivação do tenista. A pergunta não dita era: por que agora?

O tom subiu de vez em março de 2025, quando Djokovic publicou fotos de uma marcha estimada por organizadores em centenas de milhares de pessoas e escreveu: “Histórico, incrível!”. A frase, simples, foi lida como endosso a um movimento que já cobrava diretamente o governo. Era o suficiente para disparar uma resposta coordenada.

A partir dali, veículos próximos ao poder passaram a retratá-lo como ingrato, oportunista e “falso patriota”. O jornal sensacionalista Informer foi além e chamou o tenista de “vergonha da nação”, afirmando que ele teria “fugido para a Grécia”. A virada de tratamento foi brusca. Um ano antes, depois do ouro em Paris-2024, políticos falavam em erguer um museu para eternizar sua carreira. Agora, capas chamativas tentavam desconstruir o símbolo.

Essa escalada tem contexto. A Sérvia vive, há anos, um ambiente midiático concentrado, com redes públicas e privadas alinhadas ao governo em horários de grande audiência. Organizações internacionais vêm apontando pressão sobre jornalistas críticos e campanhas de difamação contra figuras públicas que destoam. Nesse terreno, o alcance e a repetição de mensagens fazem diferença. É aí que um ídolo vira alvo preferencial.

O episódio de Wimbledon 2025 virou combustível. No dia do título, Djokovic dançou na quadra. Críticos disseram que os passos imitavam um gesto visto em protestos, uma espécie de ironia ao governo. Ele respondeu que dançou a pedido dos filhos, ao som de uma música popular, ponto. Em tempos normais, seria uma cena leve. No clima atual, virou pauta por dias, com análises quadro a quadro em talk shows.

O barulho saiu da TV e bateu no bolso. Em agosto de 2025, Djokovic anunciou a transferência do ATP 250 de Belgrado para Atenas, rebatizado como Hellenic Championship e marcado para a arena OAKA. No papel, foi uma decisão de negócios: estrutura, calendário, público, parceiros. Na prática, a leitura política foi inevitável. Um torneio com seu nome deixando a capital sérvia justo agora virou prova de desgaste para seus críticos e ato de autoproteção para seus aliados.

Transferir um evento assim não é simples. Exige acordo com a ATP, garantias de quadras, alojamento, transporte e patrocínio. Também mexe com dinheiro local: hotéis, restaurantes e fornecedores perdem uma semana de alta ocupação. Em Belgrado, agentes do setor turístico admitiram, reservadamente, que a troca do torneio impacta a baixa temporada. Em Atenas, o governo grego comemorou o impulso no calendário esportivo e a chance de atrair visitantes fora do verão.

Em paralelo, cresceram reportagens sobre uma possível mudança de residência para a Grécia via Golden Visa — o programa que dá autorização de residência a estrangeiros que investem no país. As regras oferecem residência para o investidor e família, com direito de viver e circular na área Schengen. Djokovic teria se reunido duas vezes com o primeiro-ministro Kyriakos Mitsotakis, em junho, em Atenas, e no começo de agosto, em Tinos. O conteúdo das conversas não foi divulgado. O tenista, ao ser questionado, disse que “no momento” não planeja emigrar. O rumor, porém, não arrefeceu.

Faz diferença lembrar que Djokovic sempre manteve bases fora da Sérvia ao longo da carreira, com longas temporadas em Monte Carlo e centros de treinamento na Europa. Jogadores desse nível costumam organizar a vida em função de calendário, impostos e logística. A novidade, agora, é a associação entre uma eventual mudança familiar e um conflito político em casa.

O que explica a ferida aberta? Em países onde o esporte funciona como vitrine nacional, a palavra do maior campeão tem peso simbólico enorme. Na Sérvia, Djokovic é mais do que um atleta: é o rosto que levou a bandeira aos quatro cantos, venceu em cenários hostis e voltou com troféus. Quando essa figura diz que está com estudantes que pedem respeito, a mensagem atravessa bolhas e atinge públicos que não vão a protestos nem seguem política no dia a dia.

Do outro lado, a lógica é defensiva: quando a contestação ganha um endosso desse tamanho, o governo tenta reduzir dano desqualificando o emissor. É a cartilha clássica. Vale questionar motivações, associar a interesses externos, lembrar episódios que possam arranhar a reputação. A disputa vira narrativa, e cada gesto vira munição.

No meio desse cabo de guerra, vidas reais seguem afetadas. Técnicos, fisioterapeutas e staff ligados ao torneio de Belgrado precisaram se reorganizar às pressas. Pequenos patrocinadores locais, que só ativam em casa, perderam sua principal vitrine anual. Jovens tenistas sérvios, que costumavam ganhar convites para a chave principal ou quali do ATP 250, agora terão de viajar para buscar oportunidades de pontuar e aparecer.

Também há um efeito sobre a seleção. A relação entre Djokovic e a Federação de Tênis da Sérvia não foi rompida publicamente, mas ficou mais sensível. Disputas de Copa Davis dependem de clima e coordenação com o staff nacional. Uma fagulha política pode contaminar a quadra? É cedo para dizer. Por ora, dirigentes mantêm silêncio calculado.

Na sociedade, a divisão é visível. Entre torcedores, há quem diga que ídolos não devem se calar diante de injustiças, e há quem ache que política e esporte não se misturam. Carreiras públicas vivem desse dilema. Na prática, o mundo mudou. Atletas têm canais diretos com milhões de pessoas e, quando usam, não há como voltar ao ponto anterior como se nada tivesse acontecido.

O governo, por sua vez, tenta reconduzir a narrativa. Autoridades defendem que a tragédia de Novi Sad está sob apuração, que eventuais responsáveis serão punidos e que os protestos foram “politizados”. Ao mesmo tempo, ninguém no topo assume publicamente a campanha de desgaste contra o tenista. É o jogo de sinalizações: o recado sai por terceiros, a mão oficial não aparece.

No exterior, a história é lida como um retrato da Sérvia de hoje. Desde que Aleksandar Vučić chegou ao poder, primeiro como premiê e depois como presidente, o país vive polarização intensa, com eleições disputadas e queixas de concentração de poder. Organizações de liberdade de imprensa vêm apontando problemas recorrentes, e casos de difamação contra críticos não são novidade. Um nome do tamanho de Djokovic coloca holofote internacional sobre esse contexto.

E como isso termina? Há alguns cenários. O primeiro é o arrefecimento natural do conflito, com o tempo e a rotina esportiva tomando o lugar do noticiário político. O segundo é a disputa se agravar, caso novas manifestações cresçam ou um novo episódio acenda ânimos. O terceiro passa por algum gesto simbólico: um encontro, uma mensagem conciliatória, ou a confirmação de uma mudança para a Grécia, o que reabriria a discussão em outro patamar.

Há ainda o vetor econômico. Se patrocinadores internacionais perceberem risco reputacional no ambiente sérvio, podem pedir para deslocar ativações para outros mercados — algo que já acontece em esportes quando a política ferve. Por outro lado, marcas locais que crescem com o rosto de Djokovic podem reforçar a parceria fora do país, surfando o prestígio global do atleta, longe do barulho doméstico.

O episódio de Novi Sad, que gerou luto real e perguntas duras, virou prova de estresse para o sistema. Em crises assim, símbolos nacionais costumam ser convocados a dizer de que lado estão. Djokovic escolheu falar com cuidado, mas falou. A resposta foi dura. Entre o silêncio confortável e o ruído necessário, ele preferiu o segundo.

Nos bastidores, conselheiros tentam calibrar cada frase. Um post que em tempos normais celebraria uma marcha pacífica virou arma de ataque. Uma dança virou provocação. Um ajuste de calendário virou traição. É o preço de viver na intersecção entre esporte, política e identidade nacional — um lugar onde nenhum passo é neutro.

Para quem acompanha a carreira do sérvio desde a adolescência, há uma ironia amarga. O atleta que construiu sua imagem como exemplo de disciplina mental, capaz de suportar hostilidade em quadras do mundo todo, agora enfrenta sua arena mais difícil em casa. A diferença é que, desta vez, não há linha de base, nem tie-break. Há narrativas, câmeras e ruas.

O mundo do tênis, que gosta de neutralidade e etiqueta, observa com certo desconforto. A ATP raramente se mete em política doméstica. Organizadores preferem falar de quadras, bolas novas e calendários. Ainda assim, quando um evento sai de uma capital e vai para outra por motivos que extrapolam a planilha, o circuito inteiro capta a mensagem.

Seja qual for o próximo capítulo, uma coisa já mudou: a relação entre Djokovic e o país que o criou esportivamente não voltará ao ponto zero tão cedo. Museus, estátuas e homenagens congelam memórias, mas não blindam ninguém do presente. Na Sérvia de 2025, um campeão incontestável virou, também, um personagem político. E isso, queiram ou não os envolvidos, tem efeitos que duram mais do que uma temporada.